Leite é inflamatório?

O leite é um alimento amplamente consumido que faz parte da nossa cultura, é de fácil acesso e possui um lugar importante na dieta de muitas pessoas. No entanto, ao longo dos anos, surgiu um mito de que o leite poderia ser inflamatório para qualquer pessoa.

Neste texto, vamos explorar essa questão e desmistificar a ideia de que o leite é um alimento inflamatório. Além disso, abordaremos em que condições é necessário ter um cuidado especial com a prescrição do leite, como nos casos de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e intolerância à lactose.

β-caseína Tipo A1 e A2:

‌Existem estudos e teorias que sugerem que o leite pode ser inflamatório devido a algumas de suas características. Por exemplo, o leite de vaca contém uma proteína chamada caseína que, para algumas pessoas, pode ser de difícil digestão.

‌O leite de vaca geralmente contém dois tipos de β-caseína, tipos A1 e A2. A digestão do tipo A1 pode produzir o peptídeo β-casomorfina-7, que está envolvido em efeitos gastrointestinais adversos do consumo de leite, alguns dos quais se assemelham aos da intolerância à lactose.

A dificuldade na digestão da caseína e a formação de peptídeos bioativos é o que pode desencadear respostas inflamatórias no corpo e sintomas como rinite, sinusite e acentuar sintomas de doenças autoimunes, como a artrite reumatóide. Nesses casos, é aconselhado uma redução, exclusão de laticínios ou troca do tipo de leite, de acordo com a tolerância.

O consumo de leite contendo β-caseína tipo A1 foi associado ao aumento da inflamação gastrointestinal, piora dos sintomas digestivos, atraso no trânsito e diminuição da velocidade e precisão do processamento cognitivo. Já em leites contendo apenas a β-caseína A2, todos esses sintomas foram atenuados.

Isso justifica porque algumas pessoas, mesmo sem diagnóstico de intolerância à lactose ou APLV apresentam dificuldade no processo digestivo de determinados leites. Nesse caso, é aconselhado o teste com o leite tipo A2, onde terá apenas a variante A2 da caseína.

Para saber qual tipo de leite você está comprando, basta ler o rótulo.

A verdade sobre o leite e a inflamação

Contrariando o mito do leite ser inflamatório, os estudos recentes mostram que o leite pode ter efeitos anti-inflamatórios, ainda que pequenos.

Uma revisão de ensaios clínicos com 16 estudos avaliou o efeito do consumo de leite e derivados nos marcadores inflamatórios em adultos saudáveis, com excesso de peso ou obesidade, síndrome metabólica (SM) ou diabetes tipo 2 (DM2) e concluíram que não promoveu inflamação.

‌O efeito anti-inflamatório é associado a presença de compostos como: ácido linoleico conjugado (CLA), lactoferrina, probióticos (no caso das bebidas fermentadas como o iogurte), antioxidantes como Vitamina E, Vitamina A, selênio e zinco.

‌Além disso, os peptídeos bioativos formados durante a digestão da β-caseína tipo A2 têm capacidade de modular a resposta inflamatória positivamente. É importante ressaltar que os efeitos anti-inflamatórios desses compostos podem variar entre indivíduos e dependem de diversos fatores, como a saúde geral, a presença de condições específicas e a sensibilidade individual a certos alimentos.

As pesquisas observacionais não encontraram associação entre o consumo de leite e marcadores inflamatórios em indivíduos saudáveis.

Quando falamos da análise de marcadores bioquímicos, estudos observacionais não encontraram associação significativa entre o consumo de leite e marcadores inflamatórios, como a proteína C reativa (PCR) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), em indivíduos saudáveis. Esses resultados indicam que o leite, quando consumido como parte de uma dieta equilibrada, não causa inflamação.

‌Uma revisão guarda-chuva (revisão de revisões sistemáticas) de estudos observacionais incluiu 53 revisões que abordavam leite e derivados. O estudo destaca as evidências que relacionam o consumo de laticínios com a saúde cardiometabólica e o risco de câncer colorretal. Estudos têm demonstrado que certos componentes encontrados nos laticínios, proteínas, cálcio e vitamina D, podem desempenhar um papel na prevenção de doenças cardiovasculares e no combate ao câncer.

‌As gorduras presentes nos laticínios, como os ácidos graxos monoinsaturados (MUFA), têm sido associadas a benefícios cardiovasculares, como a melhoria do perfil lipídico e a redução da resistência à insulina. Além disso, ácidos graxos saturados específicos, como o palmítico e esteárico, presentes nos produtos lácteos, têm propriedades que podem ajudar a prevenir dislipidemias.

‌As proteínas do soro de leite também têm sido associadas a diversos benefícios metabólicos, incluindo o controle da pressão arterial, perfil lipídico, composição corporal, sensibilidade à insulina e regulação da glicose.

Além disso, os laticínios são fontes ricas de cálcio, e estudos mostram associações entre a ingestão de cálcio e benefícios metabólicos, como a regulação dos lipídios séricos, manutenção do peso corporal, regulação da pressão arterial e sensibilidade à insulina.

‌A vitamina D, presente nos laticínios, desempenha um papel importante no metabolismo ósseo, no metabolismo energético, na regulação da pressão arterial e na sensibilidade à insulina. Além disso, a vitamina D pode atuar como antioxidante, reduzindo o risco de doenças metabólicas e exercendo efeitos anti-inflamatórios.

‌Uma revisão de ensaios clínicos avaliou o efeito do consumo de leite e derivados nos marcadores inflamatórios em adultos saudáveis, com excesso de peso ou obesidade, síndrome metabólica ou diabetes tipo 2. Foram incluídos 16 estudos que mediram os marcadores inflamatórios no plasma, soro ou expressão gênica em indivíduos saudáveis e com as condições metabólicas já citadas.

‌As principais conclusões foram as seguintes:

  • O consumo de leite ou derivados não teve efeito inflamatório em adultos saudáveis, com excesso de peso ou obesidade, síndrome metabólica ou diabetes mellitus tipo 2.
  • A suplementação láctea a longo prazo mostrou um fraco efeito anti-inflamatório em ambas as populações estudadas.
  • Entre os indivíduos com sobrepeso, obesidade ou outras alterações metabólicas, a maioria dos estudos não encontrou aumento na inflamação após a intervenção com produtos lácteos. Alguns estudos mostraram redução nos marcadores inflamatórios, como TNF-α, MCP-1 e IL-6, em determinados grupos.

Em conclusão, as evidências dessa revisão sugerem que o consumo de leite e produtos lácteos não promovam inflamação em adultos saudáveis ou com as alterações metabólicas supracitadas.

Cuidados Especiais: APLV e Intolerância à Lactose

Embora o leite não seja inflamatório em geral, é importante ressaltar que certas condições de saúde exigem um cuidado especial na prescrição e consumo do leite. Alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e intolerância à lactose são dois exemplos em que a restrição do leite pode ser necessária.

‌A APLV é uma reação alérgica às proteínas do leite de vaca, sendo mais comum em crianças. Nesses casos, a exclusão do leite e seus derivados é fundamental para evitar reações adversas.

‌Já a intolerância à lactose é uma condição em que o organismo tem dificuldade em digerir a lactose, o açúcar presente no leite e seus derivados. Pessoas com intolerância à lactose podem apresentar sintomas gastrointestinais, como cólicas, diarreia e flatulência, após o consumo de leite.

‌Nesses casos, estratégias como o consumo de leite com baixo teor de lactose ou o uso de enzimas lactase podem permitir que essas pessoas desfrutem do leite sem desconforto.

A intolerância à lactose não significa que todos os laticínios devem ser evitados, pois iogurte e queijo duro, por exemplo, costumam ser bem tolerados e fornecem benefícios nutricionais.

‌É importante destacar que, apesar dessas condições específicas, muitos laticínios contêm uma variedade de nutrientes essenciais para a saúde, como cálcio, vitamina D e proteínas de alta qualidade.

A exclusão desnecessária do leite da dieta pode levar a deficiências nutricionais se as fontes alternativas não forem cuidadosamente selecionadas. Portanto, é fundamental a orientação do nutricionista para um plano alimentar adequado, levando em consideração suas necessidades específicas de saúde.

‌Por fim, é importante destacar que o consumo de leite e derivados não deve ser desencorajado se o paciente não apresenta nenhum sintoma, pois é uma valiosa fonte de nutrientes essenciais. Esses nutrientes desempenham papéis importantes na saúde óssea, função muscular, e sistema imunológico, a exclusão desnecessária pode levar a deficiências nutricionais.

Conclusão

Desmistificar o mito de que o leite é inflamatório para todos é importante para garantir uma compreensão precisa dos efeitos do leite no organismo.

Estudos científicos demonstram que o leite não é intrinsecamente inflamatório e pode até ter propriedades anti-inflamatórias devido a compostos bioativos presentes. No entanto, é necessário considerar condições individuais, como APLV e intolerância à lactose, em que a restrição do leite pode ser necessária.

Referências:

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